O que aprendi com meus irmãos de rua

Hoje morreu mais um irmão de rua na cidade onde habito. Após várias missões realizando o atendimento destas pessoas, pude aprender como elas são especiais.

Mas como assim? Como um viciado, drogrado, sujo, sem lugar fixo para morar pode ser especial? Pois é, este é o tipo de coisa que só podemos ver pelos olhos da fé.

Este irmão em especial tinha o apelido de Sorriso. Aliás ele já havia morrido diversas vezes no passado. Essas pessoas estão sempre morrendo, ou por confusão alheia ou poque somem misteriosamente por um tempo.

Imagina uma pessoa que mora há anos na mesma esquina, dorme na calçada e toma chuva e sol todos os dias e ainda no final da noite, quando te encontra, abre um grande sorriso. Você conseguiria?

Eu não. Apenas o simples fato de passar uma noite na rua (por despejo ou por não ter lugar para morar) me deixa aterrorizado. Tempos atrás precisei dormir algumas horas no carro. O sentimento não é o mesmo que dormir na rua, mas dá pra ver que não é nada confortável.

Mesmo assim existem milhares de irmãos morando nas ruas do Brasil e do Mundo. Os sensos da vida apontam números muito menores que os verdadeiros, pois essas pessoas se fazem invisíveis quando querem, especialmente os mais orgulhosos.

Chamo-os de irmãos pois enxergo neles a pessoa de Cristo. Foi Jesus quem disse em São Mateus 25, 35-36:

porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes;36nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim.

As pessoas em situação de rua me ensinaram que não existe ninguém que é da rua, ou mesmo mora na rua: é uma situação, que muitas vezes passa. É como ser um endividado, ter uma doença ou estar desempregado. São situações que podem ou não passar, mas não nos definem.

Se bem que temos a triste tendência de nos rotularmos uns aos outros por nossa situação atual. Sou pobre ou rico. Sou saudável ou doente. Velho ou jovem. Assim por diante.

Com essas pessoas aprendi que rótulos são ilusões: num simples piscar de olhos, um acidente, uma injustiça, que muitas vezes nem é nossa culpa, a situação muda e os rótulos caem.

Aprendi mais. Vi que julgamos facilmente pessoas em situação de rua: mora na rua por ter alguma incapacidade ou não tem vontade de sair. É vagabundo. Gosta de ficar bebendo, usando drogas por isso não volta pra casa.

Na verdade, existem causas mais complexas por trás destas máscaras: famílias destruídas, abusos ocultos, injustiças não reveladas. Ao conhecer ( o que exige bem mais que uma simples conversa) melhor essas pessoas, é possível ver traumas terríveis.

Um morador famoso da cidade é agressivo mandão e autoritário. Controla outros moradores de rua e está sempre batendo de frente com mulheres em boa situação (carros e roupas vistosas). Quando notei esse comportamento comecei a criar uma aversão interior a ele. Uma vez vi ele bloqueando a saída de um carro com duas mulheres e por muito pouco não parei para tirar a limpo com ele.

Porém um amigo dele de infância, que é meu amigo (sim, temos um amigo em comum) me contou que no ensino médio ele era um prodígio. Muito a frente dos outros alunos, era praticamente um gênio da matemática. Depois, adulto, se tornou um dos maiores vendedores da cidade. Tinha uma bela família. Certo dia, descobriu que sua esposa o traía. Segundo esse meu amigo, isso o levou a morar na rua e ir perdendo cada dia mais a lucidez.

Por outro lado, aprendi também que moradores de rua não são apenas vítimas como muitos pensam. Muitos escolhem este caminho por não querer andar nas regras da sociedade. Diversos acabam criando para sí gangues e grupos para ter uma vida fácil. Ou seja, não diferem em nada do restante de nós. Apenas escolheram meios menos limpo para tanto.

Impressiona a capacidade que tem para mentir. Te contam estórias impressionantes e juram com muita facilidade. Poucos tem compromisso com a verdade. Parecem até empresas modernas: na hora da venda (no caso deles na hora de pedir) te tratam como deuses. No pós venda (quando você precisa deles) somem. Essa capacidade de desaparecer que as pessoas em situação de rua tem é realmente impressionante.

São especiais. Uma pessoa especial é capaz de mudar a forma como você enxerga sua vida. Conheci uma moradora, por volta dos 50 anos, que vivia revirando os lixos da cidade. Certa vez ela sumiu. Procurei saber e um colega me informou que ela tinha câncer terminal e estava em tratamento. Achei estranho uma pessoa em situação de rua ter acesso ao tratamento do câncer. Esse é um dos lados legais do nosso país e do SUS que poucos conhecem.

Um tempo depois a reencontrei. Conversei com ela e me disse em detalhes que havia superado a doença. Continua pelas ruas mexendo nos lixos. Essa mulher me levou a mudar meu jeito de ver a forma como nos preocupamos com nossa saúde. Gastamos horrores com planos de saúde, médicos caros na esperança de adiar a morte por mais um dia. Pura ilusão.

Este post está ficando muito longo e claro, não vou conseguir colocar aqui tudo o que aprendi sobre a vida com essas pessoas. Vou fazer aqui um paralelo que pode parecer exagerado e sensacionalista, mas sinto no fundo do meu coração que é verdadeiro: aprendi mais sobre a vida com essas pessoas em situação de rua, do que com todos os professores das escolas particulares que estudei. Conto no dedo as lições de vida que tive na escola. Porém não consigo contar as lições que aprendi com pessoas que moram na rua.

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